terça-feira, 13 de dezembro de 2011

VOCÊ VAI SER MÉDICO

O futuro médico nasceu. Quer tomar leitinho, nenê? Pode tomar, mas só um pouco. Não se acostume com muito. Você vai ser médico. 

Está aprendendo a andar. Ande com cuidado. Olhe bem onde pisa para não cometer erros. Você vai ser médico. 

Primeiro ano na escola. Prepare-se para ser vigiado, cobrado, avaliado e provavelmente repreendido se não corresponder às expectativas. Você vai ser médico. 

Já está crescidinho. Trate bem os pais, os professores, os coleguinhas, os animais. Aprenda a ter respeito por todos. E não espere recompensas por isso. Não está fazendo nada além de sua obrigação. Você vai ser médico. 

Adolescência. Tempos difíceis. Estude muito e se divirta pouco. Gaste sua juventude nas bibliotecas e cursinhos. O vestibular se aproxima. No final, talvez valha a pena. E nem pense em escolher outro curso. Nada de engenharia ou direito. Já decidimos. Você vai ser médico. 

Sucesso. Cabelo raspado, nome estampado nas páginas do jornal, internet, corredores. Agora é oficial. Você vai ser médico. Faculdade de medicina. Agora ninguém te segura. E quando eu digo ninguém, em se tratando de Brasil, quero dizer ninguém mesmo. Nem a polícia. Você só não vai receber seu diploma se fizer algo mais que esfaquear uma colega, sequestrar um ônibus, roubar a comissão de formatura ou se filiar a um grupo de degoladores. No Brasil é assim. Entrou, só sai morto ou médico. Preso, nunca (o que é um absurdo, mas na prática é mais ou menos isso que estamos vivendo). Mas não pense que essa regalia te dá o direito de relaxar e esquecer os seus compromissos. É o momento de estudar e se dedicar. Corpo e alma voltados para o cumprimento do dever hipocrático. Absorva todo o conhecimento, pois você precisará dele. Você vai ser médico. 

Formatura. Juramentos. Agora a história é outra. Agora o carimbo é seu. Agora é a sua cara na frente do tapa. E é melhor dar a outra face. É o mínimo que esperam de você. Cobranças. Atenda bem, atenda rápido, atenda todos, atenda no hospital, no posto de saúde, no corredor, na lanchonete, na rua, no telefone, de manhã, de tarde, à noite, de madrugada, nos intervalos, nos feriados e finais de semana, no natal, durante as férias. E não reclame. Agora você é médico. 

Seja paciente, seja cortês, seja humilde e, acima de tudo, seja cauteloso. Cometeu um erro? Erro médico! O paciente não melhorou? Erro médico! Não escreveu direito? Erro médico! Chegou atrasado? Erro médico! Não tem vaga no CTI? Erro médico! Os anjos levaram pelas mãos aquela senhora de 98 anos que sofria de 115 doenças diferentes? Erro médico! Você nem imaginava que iria errar tanto, não é mesmo? Se existem médicos envolvidos, provavelmente pensarão que o erro partiu deles. Não se envolva em acidentes de trânsito. Mesmo se baterem na sua traseira, por praticar medicina você já estará errado. 

De acordo com a nova reforma ortográfica, “erro” se tornou termo composto, sempre acompanhado pelo “médico”, separados ou não por um hífen. Não existe médico que não esteja errado, nem erro que não tenha relação com um médico. Não demora muito e a qualidade de médico irá se tornar agravante ou qualificador de todos os crimes. “Soltar balão = 3 meses de detenção, salvo quando praticado por médico, quando a pena deverá ser triplicada”. Muita cobrança e muitos erros. Lembra quando você estava na faculdade e nem a polícia te parava? Acabou. Agora você está sendo vigiado. Errou? Cadeia! Mesmo que por pouco tempo. Não pegou cadeia? Então vai perder a carteira de médico! Escapou dessa também? Então passa a grana! 

Todo mundo quer processar um cara rico, e rezam as lendas que o médico é um indivíduo abastado, que passa as noites contando moedas de ouro em sua cobertura quadruplex. Mas será isso a verdade? Os médicos estão nadando em dinheiro? E esse dinheiro todo saiu de onde? Herança? Loteria federal? Votação secreta na câmara, de madrugada, para triplicar seus próprios salários? Será que estão recebendo propina e escondendo nas cuecas e meias? Parece que não. Pesquisadores acreditam que a maioria dos médicos recebe dinheiro em troca do seu trabalho. E o trabalho deles é valorizado? Claro! O governo paga verdadeiras fortunas para os médicos (na Inglaterra). No Brasil, exige-se muito e paga-se pouco. E o médico que não se atreva a entrar de greve. Se o fizer, sua foto sairá em todos os jornais ao lado de uma nota que provavelmente o tratará como mercenário, desumano, sem ética, ou coisa pior. 

O salário até poderia ser maior, mas nesse caso algum político não teria o que colocar nas meias durante as noites frias de inverno. E além do mais, as leis de responsabilidade fiscal não permitem aumentos para o funcionalismo público em ano par, ano eleitoral, ano de copa do mundo, meses quentes, meses mornos, meses frios, dias nublados ou no carnaval. Por sorte, o médico ainda pode contar com seu consultório particular, apesar de paciente particular ser artigo raro e disputado hoje em dia, desses que se você consegue pegar tem que mandar empalhar e exibir na parede da sala. Hoje, quem tem dinheiro paga plano de saúde. E paga caro. E fica achando que a maior parte daquele dinheiro vai para o médico, que deve estar acendendo cigarro com nota de cem reais. Na verdade, o paciente atendido hoje através do plano de saúde ainda passará pelo faturamento, serão abatidos os descontos e impostos devidos e, depois de dois ou três meses, o pagamento vai bater na conta do médico, que precisará completar o valor para poder cortar o cabelo (o pior é saber que nem estou exagerando). A remuneração realmente é baixa. 

Claro, não tem nenhum médico passando fome por aí (ainda), mas é absurdo que se pague mais pela filmagem do parto do seu filho do que pelo serviço do médico de trazer o pequeno artista ao mundo. E se você parar de atender este ou aquele plano que paga menos pela consulta, os pacientes guardarão mágoa eterna, pois acharão que você ficou rico e se esqueceu deles. A culpa é sempre sua. Sobra sempre para o médico, esse ser injustiçado, condenado a vagar por um mundo de deveres, privado de qualquer direito, exceto o de permanecer trabalhando calado. Errado por natureza, desvalorizado economicamente, cobrado por todos e ainda estampado no jornal como mercenário... Agora você é médico (indignado, mas ainda médico).