segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

O Psicopata

Psicopatas se tornaram um desafio para mim. Nunca consegui entendê-los e é isso que me provoca curiosidade. Convivemos com muitos psicopatas, de vários matizes e recomenda-se que se afaste deles como o diabo da cruz, única forma de "convívio". Confirmo o conselho, já que a ausência de emoções faz dele um ser não humano, que raciocina diferente e não tem códigos morais. Você fica sem parâmetros e à mercê, não importa o quanto estude o tema para se preparar. A definição psicodinâmica de Hare para psicopata inclui charme, loquacidade, grandiosidade, mentira patológica, afeto superficial, ausência de empatia e déficits do superego, como falta de remorço ou culpa e falha em aceitar responsabilidades por seus atos. Saiba que o distúrbio é basicamente de comportamento, o que torna o psicopata plenamente responsável e imputável.
As funções reguladoras e controladoras do ego são deficientes. O indivíduo persegue uma gratificação imediata com pouca preocupação com os desejos e sentimentos de outras pessoas, ou com transgressão de códigos, normas ou demandas da realidade externa.  Seu objetivo primário é evitar a tensão de não ser gratificado, evitar a ansiedade da frustração iminente. Os prazeres que experimenta são fugazes e estão mais relacionados a satisfações fisiológicas que a relacionamentos interpessoais. A bebida, o "sucesso", a aquisição de bens oferecem uma diminuição temporária de sua pressão interna por gratificação. A ansiedade antecipatória da frustração é insuportável, mas o psicopata cria mecanismos de dissimular, o principal é a negação. Assim aparenta não ser ansioso e disfarça sua necessidade de gratificação permanente. Enquanto a gratificação existir ele mantém o auto-controle, mas, na inevitabilidade da frustração tentará se antecipar com comportamento impulsivo. Seu relacionamento com a culpa é primitivo. O seu afeto é superficial, o que gera um vazio interior que busca preencher com estímulos externos que são sempre melhores que a tensão e o sentimento de isolamento do qual tentam escapar. Envolvem-se com prostitutas, renovam casamentos, adquirem bens. Seus envolvimentos emocionais são narcisisticamente centrados neles mesmos. As outras pessoas são personagens temporários nas suas vidas, com pouco sentimento de perda.  O estímulo primário é insinuante, extrativista e explorador. A pessoa anti-social teme a passividade em seus relacionamentos interpessoais. Muito de seu comportamento agressivo é para evitar o sentimento de submissão. Muitos comportamentos criminosos são decorrentes de ameaças diretas ou simbólicas que os fazem sentirem-se passivos. Prisioneiros anti-sociais se incomodam mais com a passividade diante de regras prisionais do que com o isolamento social imposto. Em razão de estar interessado apenas no que pode obter dos outros, o psicopata não se relaciona com pessoas pobres, fracas ou desprovidas de poder. O psicopata usa mecanismos de defesa como tratar seus próprios vícios como virtude. Assim se gaba de suas numerosas experiências sexuais de curta duração,
Saiba identificá-lo e afaste-se.

J. L. Pio Abreu
Médico Psiquiatra dos H.U.C.
Professor da Faculdade de Medicina da
Universidade de Coimbra

A carreira histriónica não está vedada aos homens, mas aqueles que nela se inscrevem têm de se tornar um pouco efeminados. Por outro lado, o metabolismo masculino não responde tão bem à hiperventilação, pelo que os homens preferem o alcool para trabalharem a sua memória e as mudanças de identidade. Porém, neste caso, arriscam-se a serem tomados como alcoólicos toutcourt.
Mas existe uma versão machista da carreira histriónica: tratase da psicopatia. Os psiquiatras agora chamam-lhe personalidade anti-social, mas este nome é um tanto aborrecido e pouco mediático. Psicopata é o nome que vem nos filmes e que lhe dá direito a tornar-se uma celebridade. (A propósito, é bom ter uma televisão no quarto para ir vendo os filmes que passam depois da meia noite). Aconselho-o a identificar-se com os heróis dos filmes de acção e a pensar que ser psicopata não é mau de todo. 

Para ser psicopata também tem de procurar experiências fora dos limites, baralhar a identidade e tramar a memória. No entanto costumam-se usar métodos mais radicais. Porque não ter vários nomes, incluindo um bilhete de identidade diferente para cada um? Porque não habituar-se aos disfarces, usando para isso cabelo e barba? Tem ao seu dispôr todos os recursos do histriónico, mas você vai precisar de muitos mais porque as suas aventuras têm de ir mais longe. O certo é que as raparigas conseguem ser melhores no teatro e manipular os outros com o desejo que provocam. Um rapaz não é tão bom nessa arte (embora o possa tentar) e às vezes tem de se impôr pela provocação do medo. Tem de se habituar a esse atributo das hormonas masculinas que é a violência. Como é que se vai habituar a isso? Bem, tem de começar muito cedo, aproveitando a idade em que todos os miudos, sob a irrupção das hormonas, começam a transgredir e a fazer asneiras. Em geral, eles acabam por parar com isso, quer porque os pais os travam, quer porque apanham alguns sustos, quer porque se apaixonam.

Mas você, que optou por esta carreira, não vai ser travado por qualquer destes expedientes e vai continuar toda a vida a transgredir. Para isso, vai ter de sentir que o crime compensa. E o melhor é habituar-se cedo, na altura em que os seus amigos admiram os que conseguem pôr os adultos em polvorosa, e que as autoridades ainda são indulgentes. Se aguentar isso até aos 20 anos, tem a carreira garantida. Para começar, tem de frequentar vários ambientes, quanto mais melhor. Como todos fazem, pede dinheiro emprestado num círculo de amigos, mas, ao contrário dos outros, que se mantêm com os mesmos amigos, salta logo para outro círculo, a fim de nunca pagar. Do mesmo modo, se se esquecerem de alguma coisa em sua casa, esqueça-se também de quem é o proprietário. Prosseguindo deste modo, é natural que alguém lhe peça contas.  Aldrabe à vontade mas, se isso não chegar, organize uma briga que lhe permita cortar com os antigos amigos e impôr o respeito dos novos. Habitue-se entretanto a fugir de casa, mas não volte no mesmo dia. Volte apenas quando os seus pais já estiverem desesperados e, de filho caçula, o promoverão a filho pródigo. Tal como o histriónico, jogue com as emoções dos outros, mas leve-as ao extremo. À sedução, acrescente a atemorização.

O tema da histeria e dos fenómenos a ela associados suscitam a curiosidade pública e são por isso abundantes por todo o mundo. Para além dos estudos originais de Freud, que lançaram a psicanálise, o leitor pode encontrar na lista que se segue algumas descrições exaustivas. Acresce um interessante filme de Daniel Petrie intitulado Sybil (Lorimar Productions), retirado de um livro de Rheta Schreiber que descreve uma personalidade múltipla. Temos no entanto poucas descrições em língua portuguesa, em franco contraste com a difusão destes fenómenos por aqui. Falta porém um aviso: o facto destes fenómenos serem descritos, não quer dizer que eles sejam explicados ou entendidos. Muitas das sugestões indicadas no texto (nomeadamente quanto ao papel da hiperventilação) são da minha responsabilidade e surgem de investigação em curso. Sobre o tema da Psicopatia (ou Personalidade Anti-Social) não forneço muitas descrições, mas o leitor pode ter acesso a elas através da maioria dos filmes que as televisões difundem.

Viage, viage muito, frequente as noites, e ruas e locais clandestinos, que não faltarão pessoas a proporem-lhe novas aventuras. Entretanto, não tem qualquer hipótese de cumprir algum  compromisso, mas é exactamente isso que se espera. O importante é não estar muito tempo num só lugar nem com uma só pessoa, porque assim poderia criar algum vínculo de amizade ou amor, o que o levaria a ficar condoído do sofrimento dos outros. Utilize-se apenas dos outros para que satisfaçam os seus desejos, e largue-os a seguir. Se existir uma sombra de culpa, fica bloqueado na sua carreira. Por isso, sempre que veja alguém a sofrer pense que ele é de outra espécie (aprenda a cultivar o racismo) e meta-se noutra ainda pior. Mesmo que alguém tenha de morrer, só a primeira vez é complicado, das outras habituase.

Actue 10 vezes antes de pensar, dê largas aos seus impulsos e satisfaça sempre os seus desejos. Pode hiperventilar, pode beber, mas sobretudo embebede-se com novas aventuras, cada vez maiores, que nunca o deixem pensar, a não ser para preparar a próxima. Os especialistas até têm um nome para isso: acting-out. 

Pode passar, primeiro por casas de correcção, depois por prisões. São novas mudanças de ambiente, onde aprenderá muita coisa interessante para a sua carreira, e novas oportunidades de grandes aventuras. Podem-lhe chamar mau, criminoso, ou mesmo psicopata. Mas, que fazer? O melhor é mesmo adaptar-se a isso e ver-se como os outros o vêem. Às vezes também pode sofrer com castigos ou lesões físicas. Tem de se habituar a isso, sempre pensando na que irá fazer a seguir, enquanto outros (talvez médicos) cuidam do seu corpo. Tomar a dor por conta do prazer que se segue, só multiplica o prazer. Mas tem de ser perfeitamente claro que não se importa de morrer. Vai ver o poder que isso lhe dá. Aliás, se morrer, também não se dá conta. O certo é que nunca pensou em si como pessoa, nem sabe bem se existe ou não. Quem nunca estabeleceu vínculos com outros, quem não conhece os outros como pessoas, também não se reconhece como projecto futuro. Apenas o gozo imediato, e depois logo se vê. Voltou ao estado primitivo, e pode sempre argumentar que a vida é uma selva. Talvez sobreviva. Se sobreviver, ainda tem alternativas à sua disposição. 

Meta-se nas drogas, quanto mais melhor, dirija-se a um Centro de Atendimento de Toxicodependentes, leia um pouco da secção dos maníacodepressivos, envolva-se sexualmente com mulheres e homens, infrinja castigos corporais, e tem forte probabilidade de lhe concederem a distinção de personalidade borderline, com direito a ser referido nos congressos científicos. Vá para a guerra como mercenário, trabalhe por conta de gangs, e será muito bem pago.

Arranje dinheiro, vá para um país onde existam fortes garantias das liberdades individuais, estude a lei e pague a um bom advogado, e terá uma velhice garantida. Meta-se em negócios, na grande especulação financeira, e a própria lei sancionará a sua carreira. Se optar por isso, tem, pelo menos, a vantagem de nunca encarar, olhos nos olhos, as suas vítimas. Se, a conselho dos advogados, se envolver paralelamente em acções beneméritas, até pode vir a merecer uma estátua.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

EDITORIAL SOBRE A PERÍCIA DO INSS

A Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, periódico editado pela laboriosa FUNDACENTRO, trás em seu volume 37, número 125 de Jun/Jul 2012, editorial assinado pelos eminentes pesquisadores Maria Maeno e José Tarcísio Buschinelli sobre a proposta de concessão de benefícios por incapacidade sem perícia inicial do INSS. Atentos a tudo que se pode saber (pois há muito que não se sabe, talvez porque sequer exista) sobre a atividade médico-pericial em debate, este blog faz algumas respeitosas considerações sobre o texto. 

A primeira, digamos, imprecisão, foi, já no primeiro parágrafo, compartimentalizar a avaliação do pretendente a auxílio-doença em administrativa (qualidade de segurado) e técnica (realizada por perito médico). Na verdade, ilustres pesquisadores, a avaliação médico pericial é que determina haver ou não qualidade de segurado nas datas do adoencimento e incapacitação. Esta é caracterizada por julgamento multifatorial do perito, portanto transcende a técnica. 

Ainda no primeiro parágrafo é afirmado que "as perícias subsequentes eram agendadas até a cessação do benefício". Esta afirmação não corresponde à verdade, uma vez que também sempre foi da prática pericial estimar o período de recuperação através da conclusão dita tipo 2, ou DCB, que significa Data da Cessação do Benefício, estabelecida na perícia concessora, a critério do julgamento pericial. A conclusão tipo 4, ou DCI - Data da Comprovação da Incapacidade - era (e é) apenas uma das conclusões possíveis. 

No parágrafo terceiro, os autores abordam "sistema de cessação de benefícios por incapacidade, tendo por base a estimativa de tempo de recuperação funcional atrelada exclusivamente ao código da doença...". A preocupação dos editorialistas não procede, uma vez que a sociedade reivindica clareza e critério nas deliberações periciais e uma estimativa para cada patologia ou agravo é desejável. Evidentemente isso não significa um "sistema de cessação" nem jamais poderá ser uma imposição automática que violente a autonomia do perito que, repito, JULGA a incapacidade a partir da doença principal levando em conta todos os intervenientes, inclusive sociais. Se estamos falando da perícia médica previdenciária composta por servidores federais concursados, este temor não tem fundamento. 

 Em seguida, os autores abordam a "concessão mediante atestado apresentado pelo segurado". A crítica que fazem refere-se à impossibilidade, na proposta, que o atestado caracterize a doença como ocupacional. Não há qualquer referência à autenticidade dos afastamentos nem à necessidade de controles a este respeito não apenas por má-fé, mas por desentendimentos conceituais de quem tem o compromisso exclusivo com o paciente, diferentemente do perito. Ignoram, dando a entender desconhecimento da atividade ou credulidade ideológica na pureza e boa fé dos trabalhadores bem como na capacidade de médicos serem assistentes e peritos ao mesmo tempo. No mínimo ingenuidade. 

Preocupam-se com reabilitação e com a integração do INSS com o SUS. Efetivamente são braços distintos da Seguridade que se entrelaçam na medida em que as deficiências do SUS impactam na duração dos afastamentos. A principal razão de prorrogação de benefícios além dos prazos estimados é a baixa resolutividade do SUS, com alto custo previdenciário e social, questão que os editorialistas não abordam tampouco. Não seria o SUS o órgão adequado a fazer perícias por razões vocacionais, isenção inadequada devido à relação médico-paciente assistencial e, sobretudo, pela contaminação da ineficiência do órgão assistencial sobre o previdenciário, entretanto isso é sugerido pelos editorialistas a título de "desburocratização". 

O parágrafo final, entretanto, é o que mais demonstra a distância entre os bacharéis e os trabalhadores peritos, ao afirmar "Uma verdadeira mudança no modelo pericial exigiria a discussão do conceito de incapacidade, que atualmente é baseada exclusivamente no diagnóstico e apenas em um código de doença..." Nada mais equivocado! A perícia previdenciária jamais permitiu a imposição de CID sobre o JULGAMENTO da incapacidade e sempre defendeu a individualização de cada caso, ponderando sobre o diagnóstico todo e qualquer interveniente como idade, qualificação, acessibilidade, comorbidades etc. Os autores entendem os peritos como robôs, copiadores de atestados, o que não só não corresponde à realidade como faz alguns, como eu, se sentirem ofendidos.