Em qualquer sociedade moderna a seguridade social é de importância fundamental e considerada mesmo uma conquista inalienável da civilização, tamanha a sua abrangência. No Brasil, a seguridade social inclui a Previdência, a Assistência Social e assistência à Saúde como seus três pilares, e a perícia médica previdenciária está diretamente envolvida nos dois primeiros.
Dentre um grande rol de atribuições, o desafio cotidiano dos peritos médicos previdenciários consiste em estabelecer ou não o direito a benefícios decorrentes de incapacidade para o trabalho, equivocadamente chamados de auxílios-doença. Equivocadamente porque o bem jurídico segurado pela Previdência é a capacidade laboral; não a saúde.
A demanda por benefícios temporários, como o Auxílio-doença, guarda proporção direta com o nível de atividade econômica de forma que patologias crônicas às quais o segurado mostra-se capaz de conviver em épocas de pleno emprego tornam-se alegação de incapacidade diante do desemprego. Desta constatação depreende-se que incapacidade é um conceito relativo. Com efeito, incapacidade não existe per si; mas sempre “para”. Com esse pré-suposto, incapacidade é um julgamento, o que amplia a responsabilidade do perito médico previdenciário enormemente: além de constatar a doença, precisa avaliar as repercussões laborais e gerais da mesma para julgar se cabe o reconhecimento do direito ao benefício.
Apenas com a publicação do Decreto 6.934 de 11 de agosto de 2009, a perícia médica previdenciária passou a dispor de uma diretoria especializada tendo atuado, até então, vinculada à diretoria de benefícios que acumula as responsabilidades normativas e pagamento de folha mensal de milhões de benefícios. Sobrecarregada e descomprometida com as questões médico-periciais, a diretoria de benefícios negligenciou os benefícios por incapacidade por muitos anos, submetendo-se à restrição de mão de obra qualificada e à priorização histórica da arrecadação de recursos em detrimento da gestão de despesas e qualidade do atendimento prestado.
No início do século XXI assistimos a explosivo aumento no número e custo dos auxílios-doença que passou de 2 bilhões de reais para 9 bilhões entre 2001 e 2004. Evoluiu para 11 bi em 2005, 15 bi em 2006 e 16 bi em 2008. Este cenário de descontrole nos primeiros 4 anos resultou da política de terceirização de perícias médicas e provocou filas de até 180 dias (frequentemente 120 dias) entre marcação e realização das perícias. A população, sobretudo desempregada, autônoma ou sob risco de desemprego (como no setor bancário) acorreu ao INSS onde era periciada sem o devido critério nem responsabilidade com a res pública. Segurados em condições de trabalho não conseguiam liberação para reassumir seus empregos, um caos.
A partir de fevereiro de 2004, com a edição da Lei 10.876, a perícia médica passou a vislumbrar um horizonte de profissionalismo viabilizado a partir de três passos fundamentais: o concurso de 2005, o concurso de 2006, ambos para 1.500 vagas e o fim da terceirização em 19 de fevereiro de 2006.
Desde 2005 foram admitidos 3.373 peritos médicos, perfazendo 5.047 peritos ativos, segundo pesquisa realizada hoje no site do RH. Em 2001 havia pouco mais de 2.000 médicos do quadro e 3.500 terceirizados que atuavam em consultórios privados. A demanda chegou a estar 73% fora do INSS. As perícias iniciais, as mais importantes, chegaram a ser 53% realizadas por terceirizados.
O processo de transição de modelo foi traumático, segurados habituados aos benefícios fáceis se revoltaram, sindicatos organizados que se beneficiavam do descontrole protestaram e dois peritos foram assassinados em Minas Gerais, Dra Cristina Felipe da Silva em Governador Valadares e Dr José Rodrigues em Patrocínio.
A Previdência investiu em tecnologia, implantou o telefone 135 para agendamento e, o mais importante, acabou com a necessidade de remarcação de perícias para renovação dos auxílios-doença. Desta forma, as filas da vergonha foram finalmente superadas. Uma simples análise das filas mostrara que 75% dos que ali estavam já eram beneficiários de Auxílio-doença, o que restringia o acesso de novos requerentes a apenas 25% da capacidade de atendimento. Portanto, desobrigar os beneficiários de retornar periodicamente, garantindo canais para eventuais reconsiderações, desafogou sensivelmente a fila de acesso, beneficiando a grande massa de segurados.
Atualmente podemos considerar que a fase de transição acabou e a perícia médica enfrenta novos desafios que, pode-se dizer, são o ajuste fino, porém necessário e urgente. Não há mais necessidade de mutirões, os agendamentos estão em dia e é hora de ajustar a carreira à realidade da profissão médica compatibilizada com o interesse público. O Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul já se manifestou contra o pagamento de produtividade aos médicos, a sociedade questiona se há bonificação por negativa de benefícios e os peritos questionam a legitimidade de vincular-lhes o salário ao tamanho da fila, elemento que precede sua atuação e independe de sua governabilidade. É hora de por fim à remuneração variável, modelo que foi útil, mas está superado.
Perícia médica não pode ser confundida com medicina assistencial, as relações médico-periciado são muito diversas das relações médico-paciente. Esta se fundamenta na confiança mútua, na empatia, na busca do diagnóstico, do tratamento, do alívio. A relação médico-pericial fundamenta-se na desconfiança mútua, no compromisso com a verdade, com o parecer justo. A diferença é tão relevante que no Código de ética Médica, capítulo XI, é especificamente dedicado às perícias, o que não faz para nenhuma outra área, exceto pesquisa em seres humanos.
Perícia é um ato médico legal sobre um indivíduo para uma autoridade, no caso o INSS, através de seu presidente, que é quem assina as conclusões favoráveis ou contrárias aos requerimentos. Caminha-se para o entendimento de que perícia previdenciária, perícia judicial, perícia criminal e outras sejam áreas de atuação especializadas da Medicina Legal. Se caracterizada desta maneira, reduzir-se-á muito a incompreensão pública do papel do perito médico previdenciário, incompreensão esta que gera conflito e tensão.
Como o modelo adotado em relação aos Procuradores Autárquicos que deixaram de existir como tais e passaram a integrar o quadro da Advocacia Geral da União (com remuneração através de subsídios) foi vitorioso, propõe-se vincular os Peritos Médicos federais ao Ministério da Justiça e os estaduais às secretarias de estado correspondentes. Desta maneira fortalece-se também a independência e autonomia técnica dos peritos. Este modelo é o mais adequado e é defendido internacionalmente pelo Prof Duarte Nuno, presidente da Academia Internacional de Medicina Legal.
Outro aspecto relevante para o contexto deste evento em Itajubá, que é dirigido aos profissionais do Direito, é que nas demandas administrativas e judiciais o perito do INSS tem tido sua isenção questionada em razão de seu vínculo empregatício com uma das partes em lide, questão ainda ignorada no INSS.
Para finalizar, alguns números que demonstram a magnitude da perícia médica e da Previdência Social: 65% dos trabalhadores brasileiros, formais e informais, são socialmente protegidos pela Previdência, entretanto 35% correspondem a número muito alto de desamparados: 28.650.727 pessoas (dados de 2007). Os contribuintes do Regime Geral de Previdência Social, potenciais clientes da perícia médica, somam 38.899.730 pessoas. Em 2008, foram realizadas 9.217.069 perícias (15% acima do previsto) número que equivaleria a ter examinado quase 20% dos segurados (RGPS + Rurais = 46.681.275 pessoas).
Em 2008 foram pagos 16 bilhões de reais em Auxílios-doença, valor estratosférico em relação ao ano de 2001, em que se pagou 2 bilhões, mas inferior ao que fora previsto para o ano em 250 milhões de reais. Os Auxílios-doença, entretanto, estão longe de serem a maior despesa do INSS, tendo cabido às aposentadorias 123 bilhões de reais e às pensões 48 bilhões.
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