sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

O INIMIGO DO POVO – PERITO DO INSS


Por Heltron Xavier

Entre o paraíso e o inferno existe a terra. Entre a crença e a verdade existe a fé. Entre a loucura e a sensatez, vive você. Entre o individual e o coletivo, resiste lei. Entre a doença e a justiça, vivo eu. Sou perito do INSS. O porteiro do céu. O rochedo das lágrimas. O Inimigo do Povo.

Colegas, ontem mesmo passei por mais uma situação demais constrangedora. Compareci à uma festa de despedida de meu irmão que vai morar noutra cidade guiado pelas circusntâncias do destino e, durante o social, duas senhoras que eu não conhera chegaram até mim e disseram: O senhor não tem vergonha de cortar os coitados do INSS? Olharam-me com um olhar fuzilante e uma voz de ameça. Discreta respondi que fazia apenas o meu trabalho sem entrar no mérito de suas questões pessoais. Imediatamente lembrei-me de uma história popular secular.
O Inimigo do Povo (1882) Henrik Ibsen (1828-1906) retrata o conflito existente entre o individual e o coletivo, mostrando de que forma a população de uma pequena cidade-balneário da Noruega transforma o médico local de cidadão honrado em um inimigo do povo por conta de suas convicções a respeito da qualidade das águas que serviam os banhos públicos, fonte de riqueza para toda a cidade.

O perito do INSS tem uma história semelhante. Seu trabalho é ininteligível quando são colocadas na mesa as cartas da sobrevivência pessoal de cada um ainda que seja para um bem coletivo maior. O egoísmo sempiterno das pessoas, exarcerbado pelo instinto da sobrevivência, as cega do mesmo modo 200 anos depois do conto. Cegas não entendem. Não entendendo geram violência. A violencia nos mata. Os peritos estão no topo da lista dos mais procurados para esquartejamento pelo povo. São o máximo de antipatia social porque estamos no meio da guerra individual versus coletivo a sós e sem armas.

Milhares de pessoas aplaudiram e gostaram da morte trágica de um colega no meio consultório. Há dezenas de relatos no mundo virtual. Pessoas aplaudem qualquer um que agrida um médico da perícia. O único que poderia nos proteger e entender não o faz nem parcialmente. O governo é negligente com a questão e renega o seu filho que não traz votos. Enquanto ele não move um única palha restamos como ratos em ninhos de cobras. Comos soldados solitários no campo do inimigo. Como o anti-povo.

A verdade é que pelo o fato de aplicarmos nossos conhecimentos a favor da ética, mas contra os preceitos essenciais da divina arte da medicina (tratar, salvar e cuidar) somos considerados como traidores entre as pessoas comuns e, por vezes, entre nós mesmo. O povo precisa saber que não há prazer em usar do conhecimento médico, produzido para amenizar o sofrimento do próximo, para aumentá-lo ainda mais. Não podemos representar a anti-medicina. Não podemos ser o anti-Deus. A medicina negra contra o povo. Certa vez uma segurada falou que rezava 3 dias e 3 noites antes da pericia para que o perito tivesse piedade.

É preciso alardear em alta voz ao povo que, caso sua prece não seja atendida, não é por nossa culpa e que por vezes sofremos com o que fazemos. Fiquei triste e reflexivo ontem. A nossa classe precisa se mobilizar urgentemente e cobrar realmente campanhas efetivas sobre educação previdenciária. Não podemos ser os inimigos do povo.

5 comentários:

  1. Excelente texto.

    No entanto, não sei até que ponto acredito que aplicamos o nosso conhecimento "contra os preceitos essenciais da divina arte da medicina".

    Penso que esta reflexão é muito dura conosco mesmos.

    Quando indeferimos um benefício por não constatarmos incapacidade laboral naquele segurado sentado à nossa frente, estaremos mesmo abrindo mão de cuidá-lo, tratá-lo, salvá-lo?

    Não seria possível lançar um outro olhar sobre este crucial momento e compreender que, de um modo talvez enviesado, estamos devolvendo aquela pessoa ao mercado de trabalho ao invés de deixá-lo passar anos a fio afastado desse mercado (tornando cada vez mais improvável o seu retorno), improdutivo (embora não incapaz), amarrado ao estereótipo de "inválido aposentado"? Não seria possível ver no nosso ato uma forma de lhe restaurar a cidadania e a dignidade - na medida em que "o trabalho dignifica o homem"?

    De fato não é uma atitude muito popular e certamente está distante do assistencialismo. Mas não a vejo necessariamente distante da Medicina (entendida como a arte de tratar, salvar, cuidar).

    Em alguns momentos, especialmente nas perícias psiquiátricas e nos diagnósticos de depressão, já me senti "cuidando" daquela pessoa à minha frente (mesmo ela assim não o entendendo, mergulhada em suas queixas e tristezas) ao marcar o quadrinho "não há incapacidade".

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  2. Excelente teu texto, Heltron.

    Meus parabéns.

    Luciana Coiro

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  3. Não há dúvidas de que somos vistos como cruéis, sádicos, satânicos e por ai afora. No entanto quando encerramos benefícios de longa data, quando constatamos que aquele indivíduo que usufrui de um bem que é mantido por todos, trabalha arduámente e recebe o que costumam chamar "um plus a mais", não vejo onde está o afastamento da medicina, pois isso também é curar, curar socialmente. E, em grande parcela, devemos a esses aproveitadores do alheio a difamação, a cantilena entoada de forma mântrica, de que somos a encarnação de satã na terra.
    Portanto há que esclarecer, de forma sistêmica e sistemática, a grande massa ignara de que seu patrimonio está sendo usado e dilapidado por grupos sem escrúpulos de qualquer natureza.

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  4. Medicina nos traz a base necessária, mas o trabalho do perito é essencialmente técnico, na minha opinião.

    Acho que isso leva à eterna confusão entre clínico e perito. Para mim, ser médico é só o pré-requisito para ser perito. Sua atuação é pericial, técnica, legal, não médica.

    A grande questão é que a incerteza é um fantasma presente no consultório de perícia médica. Não é uma ciência matemática. O que para alguns é incapacidade total, para outros é só um desconforto, que às vezes serve até como motivação para seguir trabalhando. Esperar que em 15 minutos seja possível diferenciar o personagem 1 do 2 é querer demais do ser humano.

    Se algum perito me disser que toma todas suas decisões sem nenhuma dúvida, vai perder a credibilidade comigo.

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  5. Infelizmente ser perito do INSS,alem de ter que cumprir com a sua obrigação,não pode ter duvida nas suas conclusões.Porque se isso acontecer muitas pessoas irão perecer,apesar de terem seus direitos garantidos por lei,acabam perdendo o direito de cidadãos brasileiros.E a culpa é do perito do INSS que não foi um verdadeiro profissional.

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