segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

O médico e o medo


A grande maioria ingressou na universidade aos 18 anos. Plena adolescência. Fase de descobertas, sentimentos ambivalentes e muita expectativa.

Após merecidas férias de verão, curtidas com o euforizante tempero da vitória no vestibular, iniciamos as aulas em um curso que duraria a vida inteira.

Imagino que todos lembram-se do impacto da 1ª aula de anatomia. Um enorme salão com mesas de concreto onde jaziam os corpos que por nós seriam manejados, despojos de desconhecidos que permitiriam o embasamento para a posterior aquisição dos conhecimentos para iriam permitir lidar com a vida. Quem não se lembra da frase de Rokitanski, que slenciosa soava como sino estridente aos nosso olhos e ouvidos: “AQUI É O LUGAR ONDE A MORTE SE UFANA DE SOCORRER A VIDA” (Hic locus est ubi mors gaudet sucurrere vitae).

Fomos evoluindo, os estudos de histologia, de fisiologia, de psicologia médica, as chamadas cadeiras básicas. Depois viriam as cadeiras clínicas, o estudo intenso da patologia, levando à descoberta das doenças que infligem muito, mas muito sofrimento nos seres humanos. E, nós, já com 20 anos, jovens-velhos, amadurecidos precocemente, já atendendo nos ambulatórios, sob a supervisão de professores com vivência. No olhar de alguns um certo quê de dúvida, “o que estarão fazendo aqui esse jovens, será que sabem de fato em que empreitada se meteram?”. Dúvida sagaz, ninguém poderia imaginar o quanto de trabalho e sofrimento nos acompanhariam pelo resto das nossas vidas.

Terminado o curso, mais uma etapa, a disputa por um espaço, a luta pela residência, mais trabalho, mais estudo, maior aprofundamento no convívio com o sofrimento humano. Nessa fase, esse convívio torna-se bem mais íntimo, pacientes internados, patologias graves, doentes terminais, cancerosos, sem esperança, com dor, dor no corpo e dor na alma. E nós lá, como auxiliares de halterofilistas, ajudando a carregar o peso do sofrimento.

Assim fomos e assim vamos, continuamos trilhando esse caminho, espinhoso, as vezes embrutecedor, as vezes enternecedor.

Quinze, vinte, vinte e cinco, trinta e até quarenta anos de formados, trabalhando dia e noite envolvidos com o sofrimento alheio, presenciando suas perdas, sendo depositários de suas esperanças, muitas vezes sem poder ajudar a não ser como presença física, que pode ser reconfortante.

Pergunto a vocês, caros colegas peritos médicos previdenciários, depois de toda essa caminhada, temos direito de sentir medo? Temos direito de nos deixar dominar pelo medo de lutar pela nossa dignidade? Quem durante tantos anos enfrentou e conviveu com a doença, com o sofrimento, muitas vezes sem alívio possível, pode se dar o direito de permitir ser humilhado?

Eu mesmo respondo, não tem não! O que a vida na sua essência mais íntima não conseguiu fazer conosco ninguém poderá, quem foi e é capaz de ser médico não pode se deixar abater por atitudes que tentem desmerecer nosso trabalho, nossa honra e nossa dignidade.

Não se deixem levar pelo medo, o sentimento é legítimo, sucumbir a ele não é.

Grande abraço

Fernando Ebling Guimarães

3 comentários:

  1. Guima, parabéns , pelo texto e pelo exemplo profissional.
    Fóssemos, em termos de maioria, minimamente assemelhados a você, certamente ocuparíamos uma posição mais dígna na vida profissional.
    Continue assim,como reserva de nossas esperanças.

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  2. Guima:

    Teu texto é esclarecedor. De onde vem tanto medo ? Não sei a resposta.

    Tens minha admiração, bem sabes. Sigamos por aí.

    Abraços, Luciana

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  3. É interessante refletir: quando um Médico comete algum "erro" (a Medicina é uma Ciência imperfeita, inexata, e muito vasta; é impossível a algum ser humano dominar totalmente os conhecimentos médicos), então a "Justiça" imediatamente condena o profissional, penalizando-o duramente, muitas vezes por motivos alheios à sua capacidade e ao seu controle! Todavia, quando algum juiz toma decisões que prejudicam homens de bem e favorecem vigaristas, oportunistas, vagabundos etc., arruinando a vida de um cidadão honesto, íntegro e decente, o magistrado não sofre nada! Que armadura mais eficaz tem o Judiciário! É praticamente inatingível. Não sofre um arranhão. Os operadores do Direito são blindados. Creio que, depois dos políticos, não existe classe com maior corporativismo. Uma pessoa prejudicada pela "Justiça" morre à míngua, esperando uma droga de decisão judicial, tendo que suportar os abusos e absurdos desse sistema perverso, desonesto, corrupto e criminoso. Bando de abutres nojentos! Com raras exceções é possível encontrar algum juiz sensato, equilibrado, realmente justo, que não se envolva com coisas e pessoas ilícitas. E os Médicos, com tantos anos de estudo pesado, calhamaços muitíssimos mais volumosos do que os livrinhos de Direito, horas e horas de sono dedicadas à leitura e ao aperfeiçoamento, são vilipendiados e tratados como lixo! Se os Médicos soubessem o poder que têm...

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