segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

O JALECO E A TOGA

Um dos elementos probatórios de maior relevâncía tem sido negligencia­do pelo poder público: a prova pericial médica. O presidente Lula sancionou a Lei 12.030, de 17/9/2009, fortalecendo as perícias oficiais de natureza crimi­nal (sem, entretanto, indicar de que forma), mas nada foi feito em relação às demais perícias, particularmente as perícias médicas que podem ser previdenciárias, cíveis, trabalhistas, securítárias, militares etc.

Há modelos bem-sucedidos, como o implantado em Portugal, a partir de 2001, e que se tomou diretiva da comu­nidade européia. Já foi implantado na Suécia e fora da Europa, na Austrália. O Brasil precisa tomar conhecimento des­sa iniciativa que centraliza as perícias em um único órgão, independente, au­tônomo, concebido especificamente para isso, resultando em grande econo­mia e eficácia.

Começam a pulular por aí cursos de pós-graduação em perícias, sociedades de perícias e iniciativas desse jaez, de­sarticuladas de qualquer política públi­ca que simplesmente não existe. Pode não ser edificante que iniciativas, mes­mo bem intencionadas, sejam levadas adiante ao sabor das necessidades mercadológícas. Há quem palpite que pre­cisa haver peritos em cada especialida­de médica, esquecendo-se de que as perícias têm por finalidade o direito e, se­gundo suas especificidades (do direito), devem ser estruturadas. Pareceres espe­cializados de outros médicos podem ser necessários, mas as perícias são matéria de especialistas em atuar na interface da medicina com o direito, ou seja, na medicina legal.

Há situações em que o senso co­mum assimilou bem o que venha a ser um médico especializado em medicina legal, ou forense: ninguém questiona um médico legista, que é o especialista em medicina legal criminal, abrir crâ­nios em suas necropsias sem ser neuro-cirurgião; mas em perícias médíco-legais administrativas, cíveis e previdenciárias a contestação é muito frequente porque aqui a desvinculação da medicina assistencial não ocorreu.

Imagine-se um cidadão com quatro, cinco doenças diferentes, de quantas “perícias” precisaria? Em qual delas o juiz se apoiaria em caso de divergências entre peritos oficiais que ele mesmo no­meou? Poderia o perito, agente público, estar vinculado a um órgão como o Ins­tituto Nacional do Seguro Social (INSS), que é parte nas lides judiciais? O mun­do caminha em outra direcão: estrutu­ra e autonomia, inclusive orçamentaria e financeira, para centros oficiais de me­dicina legal aptos a realizar todos os ti­pos de perícia para qualquer deman­dante, público ou privado.

Vivemos uma torre de Babel, uma verdadeira grilagem territorial em um latifúndio que o Estado abandonou. Algumas notícias recentes de­monstram as consequências da au­sência de uma política pública em matéria médico-pericial:

Fato 1: Juízes do Rio Grande do Nor­te começam a ir a campo verificar os fa­tos. “Na sala de audiência há casos em que o instrumento probatório é muito pouco, por isso a necessidade da inspeção”, destacou o Juiz Marco Bruno Mi­randa Clementíno, titular da 3a Vara.

Fato 2: Decisão de abrangência nacio­nal da 14a Vara Federal da Bahia estabelece que um benefício que requer perícia seja pago sem a necessidade do laudo pericial.

O papel do juiz é aplicar o direito aos fatos. O que vemos agora é juizes verifi­cando os fatos e juízes aplicando o direi­to sem verificação dos fatos, duas situa­ções opostas.

Em evento realizado em Belo Hori­zonte em setembro do ano passado, o de­sembargador Nepomuceno Silva exaltou o papel do perito, dizendo que “o perito é o juiz do fato”. Ao perito caberia o papel de verificar o fato e produzir a prova, mas a nossa sociedade resolveu que não de­ve fortalecer esse tipo de atividade. Então fica uma lacuna que força o Judiciário a ocupá-la. Agora, talvez tenhamos que di­zer: “O juiz é o perito de fato”.

Por lei, o Auxílío-doença previdenciário só pode ser pago após avaliação pericial por perito médico previdenciário (Leis 8.213 e 10.876). Por ineficiên­cia do INSS, os requerentes que não con­seguem ser periciados em prazo hábil para garantir a continuidade de seus afastamentos obtiveram do Judiciário o direito de continuar recebendo a pres­tação previdenciária sem comprovar que estão doentes e temporariamente incapazes, ou seja, contra o texto da lei.

No âmbito da Justiça Federal, juízes como Ivanir Ireno Júnior, presidente da Ajufemg, têm manifestado a preo­cupação dos magistrados com o orça­mento que custeia as perícias, sempre insuficiente e requerendo suplementações que dependem de projetos de lei, com as incertezas insuperáveis de datas e valores.

Perícia previdênciária hipotrofiada; perícia judicial terceirizada, cara e ine­ficiente, quando não inexistente (tipi­camente no interior dos estados), esse é o quadro nacional que a socieda­de demora a enfrentar. Os prejuízos so­cial e econômico são imensos; a sobre­carga e retrabalho do Judiciário por ineficiência do Executivo e sua própria são alarmantes. Precisamos de peritos em número suficiente, qualificados, isentos de pressões dos periciados, de empresas, de sindicatos ou de qual­quer interesse que não busque a equi­dade e Justiça. Esse profissional só exis­tirá se o governo decidir assim.

por: Jornal Estado de Minas.

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