terça-feira, 1 de dezembro de 2009

O filme Cazuza : cultivo ao ídolo “errado”?

Luiz Carlos Sette*

“Fiquei horrorizada com o culto que fizeram a esse rapaz, principalmente por minha filha adolescente ter visto o filme”. Assim começa um e-mail de uma tal “Karla Christine, Psicóloga Clinica”. A pessoa que me repassou usou e abusou dos jargões de defesa da moral instigando a retransmissão da mensagem para o maior número possível de pessoas. O missivista ainda recheou com expressões como “ Cazuza, um idiota morto” , “oportuno artigo!” e “O risco do culto aos falsos ídolos!”.

No texto, a missivista reduz Cazuza a pó de traque. Diz que suas letras são muito “tocantes”, mas considera “inadmissível” reverenciar um “marginal”. Sem disfarçar sua crença no mais brutal maniqueísmo, afirma que o artista “viveu à margem da sociedade, pelo menos uma sociedade que tentamos construir (ao menos eu) com conceitos de certo e errado”.
* Perito Médico Previdenciário.

Mais adiante, vocifera conta a leniência dos pais que o transformaram num menino mimado: “A mãe vivia para satisfazer as suas vontades e loucuras. O pai preferiu se afastar das suas responsabilidades e deixou a vida correr solta”. E ainda, “Cazuza só começou a gravar porque o pai era diretor de uma grande gravadora .”

Em outro trecho mais dramático, a autora expressa as terríveis ameaças destiladas pelo filme contra sua filha, que ela, diligentemente, tratou de aplacar: “Precisei conversar muito para que ela não começasse a pensar que usar drogas, participar de bacanais, beber até cair e outras coisas, fossem certas, já que foi isso que o filme mostrou”. Será que foi só isso?

O tiro de misericórdia no falecido compositor – também “traficante”, porque “ele admitiu (no livro) que trouxe drogas da Inglaterra”, veio com esta pérola: “...a única diferença entre Cazuza e Fernandinho Beira-Mar é que um nasceu na zona sul e outro não”.

O texto é feroz, implacável, maniqueísta, sectário e preconceituoso, mas não sou especialista em Cazuza para refutá-lo. Achei muito mais instigante a questão do poder da mitologia midiática e me pergunto quantos ídolos não estão sendo cultuados pelo que não foram e vice-versa ? Fica também a questão da vinculação das virtudes do autor às virtudes da obra. A falta delas no primeiro diminui o valor da segunda?


O texto chama nossa atenção a um perigoso processo de identificação quase automático entre autor e obra. Mozart, por exemplo, teve uma imagem de eterno menino, bom, ingênuo, gracioso, sem vícios e sem maldade forjada principalmente no Romantismo. Claro, tudo por causa de sua música, repleta de graça que ultrapassa os limites da perfeição. Mas hoje sabemos que de naive ele não tinha nada. E se Mozart tivesse sido chefe do tráfico? Ou mensaleiro? Ou a primeira encarnação do Juiz Lalau? Sua obra seria menor?

Da mesma forma, será correto o anti-wagnerianismo de muitos maestros judeus, como John Neschling recentemente declarou numa entrevista, porque Wagner era anti-semita e sua música era cultivada no III Reich? ( Hitler tinha um pianista particular que só tocava Wagner). Então, a obra de Wagner deve ser queimada? Não presta?

Eu vi o filme e acho que a autora pode ter razão, principalmente quando caracteriza Cazuza mais do que um enfant terrible, um verdadeiro enfant gâté, um mimado. Mas cabe a pergunta: sim, ele questionou valores da sociedade burguesa, teve um toque revolucionário, mas a revolução não é um fenômeno urbano e pequeno-burguês? Lembro-me que nos tempos da ditadura se costumava dizer que a inteligentsia da esquerda brasileira discutia a fome no nordeste e o levante camponês entre um gole de Chivas e outro. E era verdade, pois a conheci de perto.

Cazuza pode ter sido tudo o que a autora descreveu, mas foi também um grande artista e as virtudes da obra não perecem sob os vícios do autor.

Vai-se o homem, fica a sua obra. Deixem o homem descansar em paz.

Um comentário:

  1. Errar é humano, mas encorajar o erro e dizer que "Não quero servir de exemplo pra ninguém" é coisa de idiota. Cazuza era um drogado, homsexual que morreu de AIDS. Tenho muita pena dele e dos que seguem seu caminho. Mas a verdade é a verdade. Porque ele morreu a verdade não muda e a psicóloga foi muito corajosa em colocar a mão nessa colméia do "politically correct"!

    ResponderExcluir

Comentário livre. Os comentaristas devem se identificar e se responsabilizar pelos conteúdos postados.